Ser CLT é coisa de fracassado?

Ser CLT é coisa de fracassado?

Por Fúlvio B. G. de Castro
Professor de Sociologia e Bacharel em Direito

Nos últimos anos, uma narrativa ganhou espaço nas redes sociais: “ser CLT é coisa de fracassado”. Jovens influenciadores e coachees de carreira propagam a ideia de que o emprego formal representa estagnação, burocracia e falta de ambição. Por trás desse discurso, no entanto, há fenômenos sociológicos e econômicos complexos que merecem análise.

Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua/IBGE, 2024), cerca de 38 milhões de brasileiros trabalham na informalidade — número que corresponde a quase 40% da força de trabalho do país. Esse contingente, muitas vezes associado ao “empreendedorismo por necessidade”, não possui garantias básicas como férias, 13º salário, licença médica ou previdência.

O sociólogo francês Pierre Bourdieu já alertava para o peso do “capital simbólico” — a valorização social que não se traduz necessariamente em renda. A glamourização do trabalho informal e das chamadas “carreiras autônomas” reflete esse fenômeno: vende-se a ideia de liberdade e protagonismo, mas, na prática, há insegurança financeira e ausência de proteção social.

Pesquisadores como Guy Standing, autor de The Precariat: The New Dangerous Class, descrevem o avanço do “precariado”: trabalhadores que vivem em empregos instáveis, mal remunerados, sem direitos e constantemente pressionados pela lógica da meritocracia. Essa condição já é realidade em setores como transporte por aplicativo e serviços de entrega.

Dados do Dieese (2023) mostram que motoristas e entregadores de aplicativos recebem, em média, entre R$ 2.000 e R$ 2.200 por mês, mas trabalham jornadas que chegam a 12 horas diárias, sem garantias mínimas. Ao longo de cinco anos, apenas 30% conseguem permanecer na atividade com renda estável — um índice de sobrevivência profissional inferior ao do trabalhador formal, que ainda mantém alguma perspectiva de progressão salarial e estabilidade.

O Judiciário brasileiro já tem se debruçado sobre a questão. Em 2023, o Tribunal Superior do Trabalho (TST) julgou casos envolvendo a Uber e a Rappi, em que parte das turmas reconheceu vínculo de emprego com base na chamada subordinação algorítmica — o controle exercido por meio de notas, bloqueios e georreferenciamento. Outras turmas, no entanto, afastaram a CLT, considerando a autonomia dos trabalhadores.

O tema ganhou ainda mais relevância em 2024, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) admitiu repercussão geral em recurso sobre motoristas de aplicativos. A decisão terá efeito vinculante e poderá redefinir a proteção social desses profissionais. O relator, ministro Edson Fachin, já alertou que o modelo atual “fragiliza direitos historicamente consolidados e pode perpetuar a desigualdade social”.

Em primeira instância, decisões como a da 2ª Vara do Trabalho de São Paulo (processo nº 1000123-52.2023.5.02.0002) têm reconhecido vínculo de emprego entre entregadores e plataformas como a iFood, ressaltando que, apesar do discurso de autonomia, as empresas determinam horários de pico, áreas de atuação e metas de entrega, configurando controle típico de uma relação trabalhista.

A sociologia crítica aponta outro fenômeno em curso: a hostilização da pobreza. Em um cenário de redes sociais e consumo simbólico, ser “CLT” passa a carregar um estigma de fracasso, enquanto o “empreendedor” é exaltado como sinônimo de sucesso. No entanto, como lembra o sociólogo Jessé Souza, a narrativa da meritocracia mascara as desigualdades estruturais: a culpa do fracasso recai sobre o indivíduo, quando, na verdade, decorre de condições históricas e sociais.

Outro fator de precarização é o etarismo. Uma pesquisa da Fundação Getúlio Vargas (2023) mostra que 58% das empresas brasileiras preferem contratar profissionais com menos de 40 anos. Isso empurra trabalhadores mais velhos para a informalidade ou para ocupações precárias.

A Justiça do Trabalho também já se posicionou contra práticas discriminatórias. Em 2022, o Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (São Paulo) condenou uma empresa que recusava candidatos acima de 45 anos em processos seletivos (processo nº 1000428-86.2021.5.02.0047). A decisão reforçou que a Constituição e a CLT vedam qualquer forma de discriminação etária.

A comparação popular de que o “CLT anda de ônibus” e o “empreendedor dirige o próprio carro” esconde uma contradição cruel: muitos motoristas de aplicativo, hoje símbolos da “nova autonomia”, sequer conseguem financiar um veículo próprio e precisam alugar carros para trabalhar, comprometendo até metade da renda mensal.

A demonização da CLT e a exaltação do empreendedorismo individual não são apenas debates culturais: refletem um processo de precarização das condições de trabalho, impulsionado por crises econômicas, avanços tecnológicos e um neoliberalismo cada vez mais individualizante.

O risco, como alertam os sociólogos e como apontam decisões judiciais recentes, é a criação de uma geração que abre mão de direitos históricos conquistados ao longo de décadas de luta sindical, em troca de um capital simbólico de liberdade que, na prática, se traduz em insegurança, instabilidade e desigualdade social crescente.

Redação O Diário de Maringá

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