Queimadas urbanas: crime ambiental e seu potencial de intoxicação em tempos de Covid-19
O domínio do fogo pelo homem permitiu que nossa evolução desse um salto. Esta nova ferramenta propiciou o aquecimento dos locais de instalação ou moradia dos nossos ancestrais transformando as trevas noturnas em ambientes com mais visibilidade, além de modificar a dura proteína animal de caça em alimento macio, saboroso, com boa digestibilidade permitindo que o tempo e a energia, anteriormente usados para mastigação e deglutição, fossem aproveitados para a melhoria de outros atributos como a evolução cerebral e a qualidade de vida.
Como resquício evolutivo, ainda ficamos magnetizados pelas chamas e atualmente temos queimado tudo que pode ser incinerado pelas cidades como se fosse uma herança cultural maligna pois, se a população entendesse os reflexos negativos desta prática, repensaria imediatamente na direção de eliminá-la.
Embora ainda exista a polêmica de que a prática de incineração de resíduos seja uma herança indígena indesejável, vários estudos antropológicos evidenciam que tribos brasileiras como os Kayapós e Nambiquara manejavam suas roças usando o fogo controlado através de técnicas discutidas e programadas de maneira responsável pelos anciãos para evitar seu alastramento e danos à lavoura já plantada, assim como na vegetação natural.
Infelizmente já estamos acostumados com as queimadas urbanas que incomodam, poluem e destroem matas e vidas. Além de intoxicar quem provoca as chamas, causam inúmeros problemas à vizinhança. Para crianças, idosos e pessoas com problemas respiratórios a gravidade é multiplicada principalmente em tempos de pandemia. Esse costume ancestral não se limita somente à queima de folhas nas calçadas e quintais. Tem gente que não pode ver um mato seco em terrenos ou “lixo” amontoado que já vai colocando fogo. Muitos incêndios maiores podem ser iniciados a partir desta prática considerada corriqueira que causa prejuízos não somente ao seres humanos. Flora e fauna (inclusive animais domésticos) sofrem severamente por serem mais sensíveis à fumaça.
É bastante comum a queima de resíduos sólidos (“lixo”) descartados erroneamente ou vegetação seca em áreas urbanas com o intuito de limpeza ou diminuição de volume do material. Esta prática pode volatilizar inúmeras substâncias tóxicas e materiais particulados com grande potencial de dispersão e deposição. Dependendo do tipo de material incinerado, além dos particulados, vários metais pesados podem ser dispersos, como: mercúrio (Hg), chumbo (Pb), cádmio (Cd), cianeto, (CN), cromo (Cr), arsênio (As), monóxido e dióxido de carbono (CO, CO2), gases nitrogenados (NO e NO2), compostos orgânicos voláteis e semi-voláteis, hidrocarbonetos policíclicos aromáticos, dioxinas e furanos.
Lembremos da tragédia da boate Kiss ocorrida no ano de 2013 em Santa Maria-RS que vitimou fatalmente 242 pessoas devido à inalação de várias substâncias tóxicas como monóxido e dióxido de carbono e principalmente cianeto proveniente da queima da espuma de poliuretano que era usada para isolamento acústico. Muitas destas pessoas tiveram que ser tratadas com hidroxicobalamina e outras ainda se encontram em tratamento.
Algumas destas substâncias com toxicidade elevada podem ser transportadas por grandes distâncias e, na maioria das vezes, o destino final é o solo, lençol freático ou outros mananciais, contaminando-os.
A prática das queimadas e seus efeitos diretos e indiretos podem ser interpretados juridicamente iniciando-se pelo artigo 225 da Constituição Brasileira. Considerando o artigo 250 do Código Penal (DL 2848/40) “causar incêndio, expondo a perigo a vida, a integridade física ou o patrimônio de outrem a pena é de reclusão de 3 a 6 anos e multa”. Considerando ainda o artigo 54 da Lei de Crimes Ambientais (9605/98) “causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora a pena é de reclusão, de um a quatro anos, e multa. Muitos municípios têm legislações mais específicas sobre o tema para que possam autuar o cidadão com o intuito de coibir a prática.
Se o fato de cometer um crime ambiental não for suficiente para sensibilizar as pessoas, vale salientar que os efeitos da fumaça e fuligem produzidos por estas queimadas podem causar problemas de saúde como intoxicação, acidente vascular cerebral (AVC), desordens cardiovasculares, enfisema pulmonar, asma, conjuntivite, bronquite, irritação dos olhos e garganta, tosse, falta de ar, nariz entupido, vermelhidão e alergia na pele, além de contribuir para o efeito estufa e aumentar ainda mais os efeitos negativos provocados pela baixa umidade do ar nos períodos de seca. Se houver fuligem, soma-se ao seu potencial tóxico, o gasto de água (geralmente potável) para a limpeza.
Considerando principalmente a pandemia por coronavírus que vivemos em 2020, aquelas pessoas que estiverem em tratamento por esta infecção podem ter uma piora considerável em seu quadro de saúde ou maiores dificuldades na recuperação devido ao potencial tóxico destas queimadas urbanas.
Os malefícios são tão grandes que as vantagens evolutivas humanas da descoberta do fogo descrita no início do texto se perdem quando intoxicamos o próximo e a nós mesmos através da fumaça gerada a partir da queima “inocente” das folhas varridas de casa ou no mato do terreno do vizinho que estava incomodando.
A mudança de atitude só acontece quando compreendemos que podemos eliminar costumes que nos prejudicam. Deste modo, evoluiremos como cidadãos conscientes dos deveres e desvincularemos a prática das queimadas de uma herança cultural. É um processo longo que somente poderá ter sucesso através de Educação Ambiental e em Saúde Pública nos níveis formal (instituições de ensino) e não formal (empresas, associações de moradores, cooperativas, etc.). O poder público com seu potencial de mobilização social tem um papel de destaque, mas no final das contas a responsabilidade é de cada um de nós.
Sem sombra de dúvidas, sob a Constituição do nosso país temos muitos direitos, mas devemos nos lembrar que também temos muitos deveres e, dentre estes, temos aquele de não queimar nenhum material ou resíduo, afinal de contas, “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida…”
Docente do Curso de Ciências Biológicas/ICENP
Campus Pontal/UFU – Ituiutaba – MG