A PEC 241 é a morte do Brasil soberano, forte, próspero e inclusivo.
O senador Roberto Requião (PMDB-PR), em artigo especial, afirma que a imposição da PEC 241 é a morte do Brasil soberano, forte, próspero e inclusivo. O parlamentar faz uma analogia da atual economia verde-amarela com a Alemanha pré-nazista, na década de 20 do século passado, quando ela foi humilhada pelos aliados com o fim da Primeira Guerra. “Mas temos certeza que o Brasil não aceitará sua morte de forma resignada”, considera, ao lembrar o exemplo dos alemães que também não se resignaram. Abaixo, leia a íntegra.
PEC 55, ex-PEC 241, o Tratado de Versalhes self-service
Roberto Requião*
A chamada PEC 241 tem assombrosas semelhanças e coincidências com o Tratado de Versalhes, que levou a Alemanha da República de Weimar à hiperinflação e à ruína econômica, na primeira metade da década de 1920.
As coincidências são quase matemáticas, numerológicas. O centro do Tratado de Versalhes estava no seu artigo 231, a chamada “Claúsula da Culpa”. Mediante tal cláusula, atribuía-se à Alemanha toda a culpa da guerra e a consequente necessidade dela pagar reparações pelos danos causados aos aliados, particularmente à França, em cujo solo as grandes batalhas foram realizadas.
A Alemanha, já muito enfraquecida pelo esforço de guerra e pela perda de suas colônias e de territórios economicamente importantes, como os da Alta Silésia, ricos em carvão, e a região industrial do Sarre, foi forçada a assinar um cheque em branco.
Mais tarde veio a conta: 269 bilhões marcos ou 6,6 bilhões libras esterlinas, uma quantia astronômica para a época, claramente impagável, a não ser com sacrifícios insustentáveis. Em síntese, as reparações impediriam a Alemanha de gastar suas receitas promovendo investimentos e o bem estar de sua população. Os alemães protestaram, argumentando, com razão, que tal imposição levaria uma economia já muito debilitada à completa ruína e seus habitantes à fome. Em vão. O objetivo do Tratado de Versalhes não era propiciar a recuperação da República de Weimar, mas exatamente o contrário: humilhá-la e arruiná-la. A agenda de Versalhes era a destruição irracional.
Mas havia vozes discordantes. A principal delas era a de Keynes. À época funcionário do Tesouro britânico, Keynes participou das negociações do Tratado. Sua visão, entretanto, era bem diferente. Para ele, as negociações deveriam focar na recuperação econômica da Alemanha e da Europa. Isso implicava que a Alemanha não deveria pagar reparações de guerra ou pagar uma quantia muito inferior à pretendida pelos aliados. Mais ainda: os EUA, que estavam em melhores condições, deveriam subsidiar um programa de investimentos produtivos na Alemanha e no resto da Europa, promovendo o crescimento econômico do continente e obtendo dividendos da recuperação econômica.
Não foi escutado. Frustrado e com problemas de saúde, voltou a Londres, onde escreveu “As Consequências Econômicas da Paz”, uma crítica duríssima ao Tratado de Versalhes. Escreveu ele:
É um fato extraordinário que o problema econômico fundamental de uma Europa faminta e se desintegrando diante de seus olhos fosse a única questão a não despertar o interesse dos quatro aliados. A reparação foi a principal excursão deles no campo econômico, e eles a estabeleceram levando em consideração vários pontos de vista, exceto o do futuro econômico dos Estados cujo destino eles estavam manipulando.
Keynes descrevia a paz do Tratado de Versalhes como uma “paz cartaginesa”, referência ao tratamento dispensado a Cartago por Roma, que, após a terceira guerra púnica, destruiu a cidade e salgou a terra onde estava situada para que lá não se cultivasse nada.
O livro fez grande sucesso, em especial nos EUA, que acabaram por não ratificar o Tratado original. Décadas mais tarde, após a outra grande guerra, ele inspiraria o Plano Marshall, programa de investimentos que foi decisivo para a recuperação econômica da Europa, principalmente da Alemanha, no pós-guerra.
Como previra Keynes, o Tratado de Versalhes levou à República de Weimar à ruína e à hiperinflação. Incapaz de pagar as reparações exorbitantes, a Alemanha sofreu, como retaliação, a ocupação do vale do Ruhr, sua principal zona industrial. A produção caiu substancialmente e, com ela, as receitas. As parcas reservas sumiram e não restou alternativa ao Estado germânico que a emissão febril de moeda para pagar compromissos mínimos. Em pouco tempo, milhões de papiermarks valiam menos que a tinta do Tratado. Havia moeda, havia títulos, havia bancos, mas não havia produção e investimentos.
A solução veio quando Hjalmar Schacht assumiu, em outubro de 1923, o Reichsbank e implantou uma reforma monetária combinando ideias dos economistas Karl Helfferich e Rudolf Hilferding. Como a Alemanha não tinha reservas em ouro, lastreou-se uma nova moeda, o rentenmark, em terras e ativos agrícolas e industriais. Num átimo, a inflação cedeu. O melhor, porém, foi que os títulos do rentenmark se tornaram muito mais lucrativos que quaisquer outros, pois o governo garantia lucros reais para os investidores. Assim, o novo sistema financeiro passou a canalizar o dinheiro para a produção, o que levou a economia alemã a crescer de novo. Não obstante, o ignóbil Tratado de Versalhes continuou a humilhar a Alemanha de diversas formas, o que levou, em última instância, à emergência do nazismo e o mundo a uma nova guerra mundial.
Pois bem, a PEC 241 é o nosso Tratado de Versalhes. Com uma grande diferença: a “Cláusula da Culpa” foi substituída, no caso, por uma “Cláusula da Vergonha”, pois o Versalhes tupiniquim, ao contrário do Versalhes germânico, é autoimposto. Com a PEC 241, o Brasil do golpe decidiu se autoderrotar, se autoflagelar. Decidiu ser um país fraco, quase insignificante. Decidiu salgar a sua própria terra.
Somente os muito ingênuos ou os mentecaptos irremediáveis acreditam que a PEC 241 destina-se realmente a buscar o equilíbrio das contas públicas. Nenhum outro país congelaria suas despesas primárias por 20 anos, a não ser que fosse obrigado a fazê-lo por potências estrangeiras.
Segundo o FMI, apenas cinco países praticam tetos de gastos. Nenhum deles, no entanto, o faz por 20 anos. O prazo estipulado não passa de quatro anos, que é justamente o prazo do acordo político que viabiliza o teto. Em nenhum deles há imposição legal do teto, muito menos imposição constitucional. Não há sanções para descumprimento e o teto pode ser abandonado a qualquer momento. Em quase todos, há exceções e válvulas de escape. Assim, nos poucos países em que há teto de gastos, há controle democrático do teto e há, sobretudo, flexibilidade para mudá-lo, descumpri-lo ou adaptá-lo. Saliente-se, por último, que todos esses países são altamente desenvolvidos, com gasto social per capita muito elevado e serviços públicos de grande qualidade. Ao contrário do Brasil.
A PEC 241, no entanto, impõe uma austeridade, absoluta, inflexível e de longo prazo. Uma austeridade cartaginesa.
É óbvio que o reequilíbrio das contas públicas poderia ser obtido de outra forma. É completamente irracional se gerir despesas independentemente do comportamento das receitas e do PIB. Segundo alguns cálculos, poderemos chegar ao final do período de vigência da PEC, fazendo inacreditáveis superávits primários de 7% do PIB, sem poder investir em serviços públicos essenciais para o bem-estar da população ou em investimentos que dinamizem a produção. Todo o dinheiro sobrante teria de ir para o pagamento do sistema financeiro e dos rentistas.
Como a Alemanha de Weimar, que trabalhava para pagar reparações às outras potências, o Brasil passaria a trabalhar exclusivamente para pagar reparações ao insaciável Mamon. No mundo inteiro, ninguém faz uma loucura dessas.
Mas há método nessa loucura. O objetivo central da PEC 241 não é o reequilíbrio das contas públicas.
A PEC 241 faz parte de uma estratégia de longo prazo, a qual visa impor mudanças estruturais definitivas no Brasil. A ideia central é substituir o modelo desconcentrador e inclusivo previsto implicitamente na Constituição de 1988 e parcialmente implantado e aprofundado pelo PT por um modelo concentrador e marginalizador, que diminuirá os custos do trabalho e da seguridade social, aumentando a margem de lucro das empresas e assegurando ao sistema financeiro e aos investidores especulativos o pagamento de juros extorsivos em larga escala.
Ao mesmo tempo, pretende-se alienar, a preços de conveniência, os setores estratégicos da economia nacional, como o setor de petróleo e gás, com as magníficas jazidas do pré-sal. Também se almeja a abertura irrestrita às “cadeias internacionais de valor”, mediante a adesão a acordos de “nova geração” (TTIP, TPPP, TISA etc.), a desconstrução do Mercosul e o realinhamento da política externa à órbita estratégica dos EUA.
Nesse sentido, os verdadeiros objetivos da PEC 241 são:
i. Estrangular o incipiente Estado de Bem Estar do Brasil, reduzindo- a níveis mínimos.
ii. Pavimentar a reimplantação de um padrão de acumulação centrado na redução de custos trabalhistas e sociais. Esse padrão será funcional para a inserção do país nas “cadeias internacionais de valor”, como exportador de commodities e de insumos baratos. A dinâmica econômica será transferida do mercado interno de massa, que não pode subsistir com desigualdade, para o setor externo, que a exige.
iii. Impor, pelo rebaixamento das despesas, a Reforma da Previdência e a Reforma Administrativa, velhos sonhos dos nossos neoliberais, que consideram o Estado Mínimo condição sine qua non para a competitividade do país.
iv. Forçar a desvinculação dos benefícios assistenciais e previdenciários ao salário mínimo.
v. Propiciar a privatização de serviços públicos, como recomenda o TISA, e como já sinalizaram vários ministros do governo golpista.
vi. Sinalizar, para os investidores internacionais e nacionais, que a política econômica ortodoxa e neoliberal estará blindada na Constituição e fora do controle democrático do voto popular.
O golpe e a PEC 241 vieram para destruir e arruinar, como o Tratado de Versalhes. Não vieram apenas para acabar com a democracia política. Vieram para acabar com nossa incipiente democracia social. Vieram para acabar com a saúde pública, a educação pública, a previdência pública e os programas sociais. Vieram para acabar com os direitos trabalhistas e previdenciários. Vieram para tirar os pobres e os negros das universidades. Vieram para tirar as crianças pobres da escola e devolvê-las às ruas. Vieram para tirar os pobres do orçamento. Vieram, sobretudo, para acabar com a soberania e com a possibilidade do país ter desenvolvimento nacional e autônomo.
Os estrategistas de Versalhes queriam uma Alemanha fraca, submissa, politicamente secundária, militarmente nula, desindustrializada e economicamente dependente. Os criadores da PEC 241 querem o mesmo para o Brasil.
Há, porém, alternativa e esperança. O Brasil precisa de um Plano Marshall, que recupere a economia produtiva e real, não de um novo Tratado de Versalhes, que só alimentará um sistema financeiro parasitário e promoverá a destruição dos núcleos estratégicos do nosso sistema produtivo e a dependência econômica. Como a Alemanha da década de 1920, precisamos de um mecanismo financeiro que estimule a produção e os investimentos.
Nas próximas semanas, apresentaremos nossas propostas para incentivar os investimentos produtivos e promover o desenvolvimento do País. O equilíbrio das contas públicas virá como resultado do crescimento, não do corte irracional, pró-cíclico e contraproducente dos gastos públicos.
Keynes, sempre premonitório, escreveu, em “As Consequências Econômicas da Paz”, que os homens nem sempre aceitarão morrer de modo resignado. Os alemães não aceitaram.
A PEC 241 é a morte do Brasil soberano, forte, próspero e inclusivo.
Mas temos certeza que o Brasil não aceitará sua morte de forma resignada.
*Roberto Requião é Senador da República em seu segundo mandato. Foi governador do Paraná por 3 três mandatos, prefeito de Curitiba e deputado estadual. É graduado em direito e jornalismo com pós-graduação em jornalismo.
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