Meus medos
Daniel Medeiros*
Quando criança, temia mais do que tudo a escuridão. Ainda hoje, quando estou sozinho, não consigo dormir sem uma nesga de luz no quarto. Tenho lembrança de pesadelos terríveis, de alguém que se aproximava da minha cama. Sentia o peso deformando o fino colchão e a presença de algo que não me queria bem. Por isso, dormia sempre envolto no lençol, a cabeça escondida pelo tênue tecido, como uma armadura inútil. No calor nordestino, suava aos cântaros e acordava sempre cansado. Até hoje sinto angústia nas cadeiras de dentista ou quando alguém se debruça nas minhas costas para ler o que escrevo ou o que estou vendo no celular. O medo aparece imediatamente. Não há como negá-lo.
Sempre temi que algo acontecesse com meu filho. Hoje ele é um homem e já acumulou mais viagens e experiências do que eu. Meu medo, porém, ainda povoa meus sonhos na forma de uma notícia. A notícia nunca é dita, mas sei sempre de seu conteúdo. Já me ouvi acordando com o som dos meus “nãos”. Repito o “não” como quem balança o crucifixo contra um possuído. O possuído, no entanto, talvez seja apenas eu.
Tenho medo de me ferir, quebrar a perna, o braço, fratura exposta, e não ter ninguém para me dar auxílio. Tenho medo do sofrimento que às vezes antecede a morte. Não tenho medo da morte, pelo contrário, vivo elaborando-a, imaginando todas as possibilidades de encontrar-me com ela sem ter de passar pela sala de espera da agonia da dor. Quando ouço ou leio que pessoas morreram dormindo ou de um mal súbito, ou mesmo de um acidente que não deu tempo sequer de saber o que aconteceu, sinto-me suspirando com esperança de que isso me aconteça igualmente. Morrer sem saber, na sacrossanta ignorância que a vida me negou.
Por muito tempo temi a violência das pessoas rudes. É exemplar a cena do filme O segredo dos seus olhos, quando o casal de protagonistas – o inspetor e a juíza – entram no elevador e o criminoso que eles prenderam e condenaram entra com eles e olha-os triunfante por estar solto e ser agora protegido da ditadura militar. O peso daquela cena é impressionante. O mal é palpável na figura daquele personagem, incansável em sua força destruidora e que expressava, naquele momento, as diretrizes oficiais. Aquele breve instante do movimento do elevador, o rapaz orgulhoso ostentando sua pistola e os dois representantes da lei indefesos, incapazes de se valerem do manto protetivo do Contrato Social porque esse havia sido rasgado e agora só havia o forte e o fraco. E eles eram os fracos.
Hoje temo as coisas barulhentas, particularmente as pessoas barulhentas. Temo também as conversas fáceis, porque não consigo responder às perguntas que não são feitas para serem respondidas, mas para serem endossadas sem qualquer critério ou pudor. Temo, inclusive, as crianças e sua rejeição à descoberta e à invenção, e seus pais ridiculamente ciosos de que precisam proteger seus filhos da frustração que, em última instância, os fizeram chegar até ali sem que eles tenham se dado conta disso.
Por fim, nesta lista incompleta e desordenada, temo a repetição que toma conta do mundo e que diminui a chance da admiração. Refugio-me nos velhos livros e nos velhos filmes. Encolho-me com alguns contos de Clarice ou de Machado, na poesia dos anos setenta de Gullar, no romance de formação do Sabino, nas memórias intermináveis do Nava. Mas não desisto nunca de encontrar novidades e, por isso, olho atento para tudo e todos, sem qualquer preconceito ou prevenção.
Esses dias descobri que estavam reprisando uma série dos anos 90 chamada Mad About You, sobre um casal de nova-iorquinos recém-casados que, ao longo das oito temporadas, cento e setenta e seis capítulos, aprendem que se amam por meio das experiências que constroem juntos. Viciei-me. É divertido e despretensioso, sem lições de moral ou fórmulas acabadas. Um breve retrato de como a vida, com amor e amizade, é capaz de vencer quase todos os medos. Ou que, pelo menos, sempre vale a pena tentar.
*Daniel Medeiros é doutor em Educação Histórica e professor de Humanidades no Curso Positivo.
@profdanielmedeiros