População em situação de rua precisa ter direitos reconhecidos e protegidos
A foto de um homem de El Salvador abraçado a sua filha, ambos mortos em um rio na fronteira do México com os Estados Unidos, divulgada no mundo todo em junho, sensibilizou milhões de pessoas que ficaram tocadas pela crueza da imagem, reveladora da desumanidade da crise migratória. Milhares de migrantes já morreram ao tentar fugir da guerra, da fome e da perseguição, ou na busca por melhores condições de vida. Como ficar indiferente ao drama desses seres humanos que nada mais querem do que uma vida minimamente digna? Talvez a distância possibilite um sentimento de tristeza que acaba sendo confortável, já que pouco ou quase nada pode fazer quem está tão longe do fato. Entretanto, o que faria cada uma das pessoas que se comove com essa tragédia afastada se um quadro semelhante estivesse aqui, bem ao lado?
Quem quiser uma resposta pode encontrar facilmente. Porque, efetivamente, há um enorme contingente de pessoas no Brasil em situação parecida. São seres humanos tão dignos de direitos quanto os imigrantes que se submetem à arriscada aventura de tentar alcançar melhores condições de vida em outros países – por exemplo, atravessando uma fronteira supervigiada ou arriscando-se numa perigosa travessia marítima –, e que enfrentam problemas semelhantes: o de ser um estranho no espaço que ocupa, não ter bens nem trabalho, sofrer preconceito e rejeição e, frequentemente, não receber atenção do poder público, que muitas vezes só se manifesta em relação a eles por meio da dura face das forças de segurança.
Essa é a realidade das pessoas em situação de rua. Não há dados recentes e confiáveis sobre essa parcela da população, entretanto, estimativas apontam para a existência de mais de 100 mil pessoas vivendo hoje nas ruas do Brasil. Esse dado consta de um estudo publicado em 2015 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), de autoria de Marco Antonio Carvalho Natalino, especialista em políticas públicas e gestão governamental da Diretoria de Estudos e Políticas do Estado, das Instituições e da Democracia (Diest), daquele órgão. Para efeito de comparação: registre-se que no primeiro semestre deste ano, tentaram chegar à Europa por mar cerca de 30 mil imigrantes, segundo dados do Parlamento Europeu.
No caso dos imigrantes, parece fácil entender por que alguém deixa seu país para tentar melhor sorte em outras terras, mesmo sob risco e na perspectiva de viver num contexto estranho quanto à língua e aos costumes. Quanto à população em situação de rua, o que faz com que alguém seja levado a essa situação? Certamente, salvo em casos excepcionais, não é por opção própria.
Experiência – Quem responde a essa questão é alguém que conhece bem o drama da população em situação de rua, porque fez parte dela: Leonildo Monteiro Filho, representante do Paraná na Coordenação Nacional do Movimento da População em Situação de Rua. Militante pelos direitos dessas pessoas, Leonildo já viveu mais de cinco anos nas ruas da capital paranaense. Ele indica os principais motivos que levam as pessoas para as ruas: “tragédias familiares – como uma separação, por exemplo –, crise econômica, desalojamento por grandes obras, problemas com álcool e drogas”.
Ele próprio foi vítima da crise econômica. Chegou em Curitiba proveniente do Mato Grosso, em busca de emprego. Não conseguiu. Sem dinheiro, passou a viver nas ruas. Leonildo fala ainda com emoção daqueles dias: “Eu era invisível para a sociedade e para o poder público. Só era visível para as forças de segurança. Eu via que os cachorros da cidade eram mais bem tratados que as pessoas que viviam nas ruas: a cidade sabe quantos cachorros tem, faz programas de recolhimento dos animais, mas não sabe quantas pessoas estão morando nas ruas”. Pior que a invisibilidade eram a rejeição e o preconceito: a cidade os olha como uma ameaça. Ele conta que se sentia duplamente despejado, explicando: “Quem mora na rua trata a rua como sua casa. Mas eu era expulso até dos lugares públicos. Às vezes, não me deixavam nem fazer uma refeição num banco de praça.”
Leonildo conseguiu deixar as ruas graças à ação articulada do Ministério Público que contribuiu para surgimento do Movimento Nacional da População em Situação de Rua e não por apoio do poder público. Hoje, ele tem um endereço, mas, ironicamente, passa muito tempo fora: como militante da causa da população em situação de rua, viaja bastante, contando suas experiências, entrando em contato com pessoas e movimentos ligados ao tema, falando com autoridades, participando de eventos, reivindicando. Nessas viagens, conta ter conhecido algumas iniciativas bem-sucedidas do poder público para atender “o povo da rua”. Ele alerta que aquelas que têm um fruto eficaz e permanente são as que dão moradia para as pessoas que não têm uma. Não basta uma política assistencialista para atender a população em situação de rua, defende ele: é preciso direcionar os esforços para tirá-la da rua.
Levantamento – Para o procurador de Justiça Olympio de Sá Sotto Maior Neto, coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos Humanos, é imprescindível fazer levantamento sobre a população em situação de rua. Para isso, inclusive, o Ministério Público oficiou ao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), solicitando que no próximo censo nacional, que deverá ser realizado em 2020, seja feita a identificação dessas pessoas. O MPPR também tem recomendado que os municípios paranaenses façam esse levantamento. “É preciso identificar essas pessoas, saber quantas são, quem são, de onde vieram, quais seus projetos de vida, se são ou não dependentes de álcool e drogas, para dimensionar a questão e, a partir daí, aprimorar as políticas públicas de atendimento a elas”, defende Olympio, explicando que há uma disparidade muito grande entre os números oficiais e aqueles apresentados pelas entidades da sociedade civil organizada que atuam com a população em situação de rua.
Outro ponto de grande importância, no qual o MPPR também tem insistido junto aos estados e municípios, é a adesão à política nacional de atendimento à população em situação de rua. Tal adesão já torna obrigatória a existência de Conselhos formuladores de políticas públicas para área, com a participação paritária da sociedade civil organizada e de comitê intersetorial, nos municípios e nos estados, para congregar as secretarias e outros órgãos que atuam na questão. Os comitês tornam-se espaço de discussão específica sobre a população em situação de rua, trabalhando para que o poder público busque a garantia dos direitos dessa população, com a elaboração de planos municipais e estaduais.
Nesses comitês, adverte, é importante sempre que haja interlocução com as próprias pessoas em situação de rua. No Paraná, o Ministério Público tem buscado essa interlocução.
Conscientização – Entretanto, a par de qualquer política pública, Olympio reforça que é fundamental a conscientização da sociedade de que as pessoas em situação de rua precisam de apoio público e solidariedade social. “Todos deveriam nutrir sentimento de indignação ao ver alguém em situação sub-humana, dormindo na calçada, e fazer o possível para que essa pessoa saia de tal situação de infortúnio. A sociedade precisa também pressionar o poder público para que responda às necessidades do mínimo existencial para essas pessoas”, diz. O procurador de Justiça lamenta que ainda haja manifestações de ódio contra a população em situação de rua, manifestações que, em vez de solidariedade, instigam a violência, que não raro chega a agressões e até a mortes. “O Ministério Público tem o importante papel de levar a sociedade à reflexão sobre a realidade dessas pessoas e estimular as práticas humanitárias em relação a elas, além de cobrar do Estado que cumpra seu dever institucional indelegável de promoção social.”
Buscando ações práticas, o MPPR tem reunido representantes de diversos setores para traçar uma política institucional de atendimento à realidade das pessoas em situação de rua. Uma ação concreta que está em curso é a fiscalização da situação dessas casas. “É preciso entender que tipo de atendimento as pessoas em situação de rua estão recebendo, porque muitas preferem dormir na rua a ir para esses estabelecimentos”, afirma. De qualquer forma, explica, esses espaços são sempre provisórios, de acolhimento temporário, como paliativo e não solução.
Para o procurador de Justiça, a solução é um projeto de moradia – a partir do direito à moradia, virá o exercício de outros direitos. Há opções, como o aluguel social, a disponibilização de propriedades do município e o apoio a projetos de diversas instituições – como um projeto da Igreja Católica que busca garantir aluguel com a participação de católicos engajados na busca de moradia para pessoas que estão nas ruas. “É preciso construir e oferecer um projeto de vida para essas pessoas, diferente do que elas vivenciam hoje. Que seja um projeto de vida com dignidade, com superação da condição de precariedade em que vivem, sem emprego, sem atenção, sem atendimento das necessidades básicas. Há que se vencer a invisibilidade a que foram relegadas essas pessoas, que não são enxergadas, nem reconhecidas como cidadãs que merecem o socorro da comunidade e, principalmente, do Estado”, defende Olympio.
Dignidade – A promotora de Justiça Ana Carolina Pinto Franceschi, coordenadora do Núcleo de Promoção da População em situação de rua do Ministério Público do Paraná, lembra que “a dignidade da pessoa humana é uns dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, sendo que dentre os objetivos da nossa República estão a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais, além da promoção do bem-estar de todos sem preconceitos de qualquer natureza”. Apesar disso, lamenta ela, “a realidade das pessoas em situação de rua é bem distante e triste”, pois elas são não apenas responsabilizadas por suas próprias condições miseráveis de vulnerabilidade, mas também tornam-se alvo de diversas formas de violências, “que consistem desde entraves no acesso aos equipamentos e espaços públicos, retiradas de pertences, rompimentos de vínculos familiares com a separação dos seus membros e ações de cunho higienistas, até brutais espancamentos, agressões e massacres”. Por isso, alerta a promotora de Justiça, é “essencial e importante a atuação ministerial na defesa dos direitos humanos dessa população, não só exigindo do estado políticas públicas eficientes, bem como promovendo a transformação desse contexto atual livre de preconceitos, de forma a reconhecer cada ser como agente atuante da sua própria história.”
Mesmos direitos – As pessoas em situação de rua têm os mesmos direitos de quaisquer outras. É o que ressalta o procurador de Justiça Paulo César Vieira Tavares, que atuou por 24 anos na Promotoria de Justiça com atribuições na defesa dos direitos humanos em Londrina. “É preciso conscientizar a comunidade para que perceba que os direitos da população em situação de rua são iguais aos direitos de todos, inclusive o direito de ir e vir e de permanecer em locais públicos. Essas pessoas podem ocupar os espaços públicos, desde que não desvirtuem a função desses locais nem atrapalhem o direito de ir e vir dos outros.”
Tavares afirma que o poder público tem o dever de oferecer condições para que a população em situação de rua tenha uma vida digna, colocando à disposição abrigos e locais onde elas possam se alimentar, tomar banho, manter condições mínimas de dignidade. “Temos que lutar para que seja efetivada uma política pública voltada a essa população”, declara.
Soluções – A solução para a garantia dos direitos da população em situação de rua começa pelo reconhecimento dessas pessoas como cidadãs, que precisam ser vistas com um olhar humanizado. Além disso, o poder público precisa efetivar políticas públicas utilizando instrumentos que já existem. A professora Adriana Espíndola Corrêa, doutora e mestra em Direito e pesquisadora do grupo de Direitos Humanos e Democracia da UFPR, lembra que o Brasil dispõe dos instrumentos legais necessários para o atendimento adequado às pessoas em situação de rua: uma política pública nacional definida e uma Constituição que garante direitos fundamentais.
Apesar disso, a situação atual é de afronta a esses direitos, com a redução dos serviços públicos voltados a elas, acompanhada do aumento da violência policial, inclusive das forças de segurança pública. “Há um agravamento da situação de vulnerabilidade dessas pessoas”, lamenta a pesquisadora. Do ponto de vista do poder público, segundo ela, é preciso “rever as políticas públicas para a população em situação de rua de, modo a alcançar soluções, ao mesmo tempo, imediatas e duradouras”.
Uma proposta de solução apresentada por Adriana é uma ideia inspirada no projeto Housing First, surgido nos Estados Unidos, que preconiza que é preciso, antes de qualquer coisa, garantir moradia às pessoas em situação de rua. “A casa é o primeiro passo, não o último, como acontece hoje”, explica. De acordo com ela, o sistema atual pressupõe uma lógica gradual, que consiste em primeiro abrigar provisoriamente essas pessoas, trabalhar para que aquelas que sejam usuárias de droga se livrem do vício e depois tentar encontrar empregos e criar laços sociais. Entretanto, ela defendeu que essa longa trajetória não funciona, pois raramente se vê uma pessoa em situação de rua que consegue percorrê-la. Com base nos resultados obtidos pelo Housing First, pode-se dizer que o primeiro passo deve ser a oferta de moradia. “Ninguém consegue emprego se não tem um comprovante de endereço, não tem onde guardar seus pertences, não tem onde dormir. A pessoa precisa ter um lugar a morar, um lugar seu, que lhe garanta privacidade e lhe dê autonomia para entrar e sair quando desejar”, esclarece.
Fonte : Assessoria de Comunicação MP-PR