Inclusão de crianças atípicas demanda pertencimento

A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que uma em cada 100 crianças no mundo está no espectro autista. A inclusão ainda é um desafio: pessoas autistas sofrem constantemente com estigma e discriminação, incluindo falta de educação adequada e de oportunidades de se envolver com suas comunidades, afirma a entidade.
Situações semelhantes se repetem com outras crianças atípicas ‒ termo usado para se referir a pessoas que se desenvolvem de forma diferente do padrão considerado “típico” em termos de comportamento, cognição, comunicação, socialização, entre outros. O conceito abrange, por exemplo, indivíduos com autismo e transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH).
De acordo com Ednália Melo, terapeuta ocupacional pós-graduada em Reabilitação Neurológica, a inclusão desde cedo é essencial para o desenvolvimento global da criança. Isso inclui a parte física, emocional, cognitiva e social.
“Quando uma criança com necessidades específicas é inserida em espaços sociais, como escolas, atividades comunitárias ou momentos de lazer, ela não está apenas ocupando um lugar. Ela está sendo reconhecida como parte do todo. E o sentimento de pertencimento é um dos pilares mais importantes para o desenvolvimento da autonomia, da identidade e da saúde mental”, pontua Melo.
A profissional lembra que, para muitas crianças atípicas, o ambiente social pode representar um desafio sensorial e emocional. Sons altos, mudanças inesperadas, interações complexas e excesso de estímulos podem desencadear sobrecargas. Por isso, a regulação emocional (capacidade de entender, expressar e controlar emoções de forma adequada ao ambiente e ao momento) precisa caminhar junto com a inclusão, diz.
“Ensinar a criança a reconhecer, expressar e organizar suas emoções de forma segura é essencial para que ela consiga se adaptar, participar e crescer com equilíbrio. A inclusão começa em casa, mas precisa se estender para todos os ambientes que a criança frequenta. E isso exige planejamento, vínculo, intencionalidade e, principalmente, amor”, orienta a terapeuta ocupacional.
Mas como esse processo ocorre na prática? O primeiro passo, segundo Melo, é fortalecer o vínculo familiar. Quando os pais se envolvem de forma afetiva e funcional, a criança se sente mais segura em casa e também mais confiante para explorar o mundo com mais autonomia.
“O fortalecimento do vínculo se constrói por meio de rotinas previsíveis, brincadeiras com propósito, escuta ativa e, muitas vezes, com o apoio da comunicação alternativa ou de recursos adaptados”, detalha.
“Nenhuma intervenção terapêutica é verdadeiramente completa se a família não estiver envolvida. Isso porque a família ‒ especialmente os pais ou cuidadores ‒ é o ambiente afetivo e funcional mais presente na vida da criança”, pontua.
A criança passa, no máximo, algumas horas por semana em sessões terapêuticas, mas vive diariamente em casa, onde desenvolve vínculos, hábitos, comportamentos e segurança emocional, complementa a profissional.
O segundo pilar é promover autonomia com intencionalidade. Isso não significa soltar a criança para que “dê conta sozinha”, mas sim ensiná-la passo a passo, com paciência e estímulo, a desenvolver independência nas atividades da vida diária: como se alimentar, vestir-se, comunicar suas necessidades, fazer escolhas simples e confiar em sua capacidade.
“Já o terceiro pilar é preparar a criança e o ambiente para a inclusão verdadeira. Isso envolve treinar adultos e crianças do convívio para que todos aprendam a conviver com a diversidade. Em escolas e igrejas, por exemplo, oriento líderes e professores a adaptar instruções, criar espaços de regulação emocional, usar recursos visuais e, acima de tudo, fomentar um ambiente de empatia, onde ninguém seja excluído por ser diferente”, explica Melo.
Ela reforça que os pais não devem ter receio de buscar auxílio profissional, como a própria terapia ocupacional. Esta é descrita por Melo como uma das principais aliadas no processo de inclusão de crianças atípicas, atuando de forma prática, funcional e personalizada para promover participação e pertencimento nos diversos contextos da vida da criança.
Na escola, por exemplo, a terapia ocupacional adapta tarefas e materiais de acordo com o nível funcional da criança. Além disso, trabalha a coordenação motora fina e grossa para facilitar a escrita, recorte e manipulação de objetos.
“A terapia ocupacional oferece estratégias para regulação emocional e sensorial durante a rotina escolar (como cantinho de calma, brinquedos sensoriais) e colabora com professores, orientando sobre comunicação alternativa, flexibilidade de regras e mediação com colegas. Há ainda a participação em reuniões pedagógicas, ajudando a construir planos educacionais individualizados (PEI)”, ressalta Melo.
No meio familiar, a terapia ocupacional ensina como organizar uma rotina estruturada, promove a autonomia nas atividades da vida diária (AVDs), como vestir-se, escovar os dentes, comer, brincar. Ela também treina os pais para usar comunicação acessível e estratégias de regulação emocional com a criança.
“Ainda hoje, em muitos espaços, a inclusão é tratada como um gesto simbólico ‒ uma vaga reservada, uma matrícula aceita, uma foto com legenda bonita. Mas a criança atípica não precisa apenas ser aceita. Ela precisa pertencer, participar, ser vista, ser ouvida e ter suas necessidades respeitadas”, finaliza Melo.