Isso Não É Ditadura: Respeitem a História do Brasil

Por Fúlvio B. G. de Castro
Professor de Sociologia e Bacharel em Direito.
Em meio aos recentes julgamentos dos envolvidos nos atos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023, volta a circular com força nas redes sociais e nos discursos políticos a ideia de que o Brasil viveria uma “ditadura do Supremo” ou uma “ditadura do Xandão”. A banalização do termo “ditadura” não apenas distorce a realidade dos fatos atuais, mas agride profundamente a memória histórica do país e das vítimas do regime militar instaurado em 1964.
Para compreender a gravidade dessa retórica, é necessário lembrar o que foi o Ato Institucional Número 5 (AI-5) , assinado em 13 de dezembro de 1968. Com esse ato, o governo militar suspendeu garantias fundamentais, fechou o Congresso Nacional, cassou mandatos parlamentares, impôs censura à imprensa e autorizou prisões arbitrárias sem mandado judicial e sem direito a habeas corpus. Foi o início de um dos períodos mais sombrios da história brasileira, marcado pelo medo, pela repressão e pela tortura sistemática de opositores.
Um caso emblemático dessa barbárie é o do ex-deputado federal Rubens Paiva , sequestrado em 1971 por agentes da repressão militar. Retirado de sua casa sem mandado judicial, Paiva foi torturado até a morte. No dia seguinte, militares ainda levaram sua esposa e filha para vê-lo sendo torturado — mas ele já havia sucumbido aos ferimentos. Esse foi apenas um dos muitos episódios de um regime que sequestrava, torturava e assassinava cidadãos brasileiros sem direito à defesa.
Comparar esse passado com o presente processo legal que julga os responsáveis por tentar subverter a democracia brasileira é não apenas um erro histórico, mas um ato de desrespeito às vítimas da ditadura. Hoje, os réus são ouvidos, têm acesso amplo à defesa, contam com prazos processuais e até fazem piadas em plenário. Um dos advogados chegou a pedir o adiamento da sessão para que pudesse tomar café da manhã com calma. Outro réu convidou o juiz para ser seu vice-presidente — como se estivesse participando de uma série de comédia, e não de um julgamento sério.
Dizer que isso é ditadura é uma afronta.
A ditadura que o Brasil viveu foi a que matou mais de 8 mil indígenas , submetidos a condições desumanas em campos de concentração mantidos pelo Estado para obrigá-los a trabalhar em grandes obras, como a rodovia Norte Sul. Foi a que torturou crianças diante de seus pais, e desapareceu com jovens trabalhadores confundidos com militantes. Foi a que calou vozes, exilou artistas, destruiu famílias, apagou vidas.
Hoje, ao contrário, réus acusados de atentarem contra a democracia recebem o tratamento que a própria democracia oferece: um julgamento justo, com amplo direito de defesa, contraditório e presunção de inocência até sentença transitada em julgado. É justamente essa garantia de direitos — inclusive àqueles que tentaram destruí-la — que diferencia um regime democrático de um autoritário.
Enquanto alguns se autoexilam em passeios pela Disney, sustentados por doações de apoiadores, outros sentam-se diante da Justiça para responder por seus atos. Mas nenhum deles foi sequestrado em casa. Nenhum foi torturado. Nenhum desapareceu.
É urgente que respeitemos a história. Comparar a democracia, mesmo com seus erros e contradições, com a ditadura militar brasileira é uma afronta à verdade e às vítimas. Que a memória daqueles tempos sombrios não seja distorcida ou usada como palanque político.
Isso não é ditadura. É democracia em funcionamento. E ela precisa ser protegida — até mesmo de quem tenta destruí-la.