Anistia a Bolsonaro: ilegalidade constitucional e cálculo político rumo a 2026

Por Fúlvio B. G. de Castro
Professor de Sociologia e Bacharel em Direito.
A proposta de anistia a Jair Bolsonaro e seus aliados não é apenas um debate político: é uma afronta direta ao ordenamento jurídico brasileiro. A Constituição de 1988, no artigo 5º, inciso XLIII, determina que crimes contra a ordem democrática, o Estado e o funcionamento das instituições — assim como crimes hediondos e de terrorismo — são inafiançáveis, insuscetíveis de graça ou anistia. Em outras palavras: qualquer tentativa de perdoar juridicamente a tentativa de golpe de 8 de janeiro viola uma cláusula pétrea, um núcleo intocável da Carta Magna.
O Supremo Tribunal Federal (STF) já reconheceu a gravidade desses delitos. Em recentes julgamentos, ministros enquadraram os atos de 8 de janeiro como tentativa de abolir violentamente o Estado Democrático de Direito, crime previsto no artigo 359-L do Código Penal. Ao tipificar os ataques como golpe, o STF consolidou um entendimento que torna a anistia não apenas ilegal, mas inconcebível do ponto de vista constitucional. Se o Congresso aprovar tal medida, inevitavelmente ela será judicializada e declarada inconstitucional.
No campo político, contudo, o simples ressurgimento da anistia já cumpre um papel estratégico. Caso o projeto avance, caberá ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva decidir se veta ou sanciona. Uma sanção é praticamente impensável, pois equivaleria a chancelar a impunidade de crimes contra a democracia. O veto, embora passível de derrubada pelo Congresso, reforçaria Lula como fiador da ordem constitucional. Nesse cenário, o STF voltaria ao centro do jogo, exercendo sua função de guardião da Constituição.
Essa dinâmica pode beneficiar politicamente o Planalto. Em 2022, Lula venceu por apenas 1,8 ponto percentual, em parte graças ao voto de eleitores que, mesmo resistentes ao PT, se mobilizaram em defesa da democracia. Ao colocar em pauta uma anistia inconstitucional, o bolsonarismo e o centrão reacendem o temor de retrocessos autoritários e, paradoxalmente, podem empurrar novamente esse eleitorado para os braços de Lula.
É nesse contexto que se insere o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas. Apontado como um dos nomes mais competitivos da direita para a sucessão de 2026, Tarcísio poderia se firmar como alternativa moderada, capaz de dialogar com o centro e de se diferenciar do radicalismo de Bolsonaro. No entanto, ao defender a anistia, o governador mergulha mais fundo no universo bolsonarista e arrisca desgastar sua imagem perante os setores que valorizam a estabilidade institucional.
O paradoxo é evidente: ao tentar proteger Bolsonaro e apagar juridicamente crimes contra o Estado Democrático de Direito, Tarcísio e o centrão oferecem a Lula justamente o discurso que faltava para reposicionar sua liderança. Um governo ainda sem uma marca clara e com popularidade instável pode, nesse embate, recuperar capital político e reeditar a frente democrática de 2022.
Do ponto de vista jurídico, a proposta de anistia está fadada ao fracasso. Mas, do ponto de vista político-eleitoral, o tema tem potencial de reorganizar forças e redesenhar o tabuleiro de 2026. Mais do que Bolsonaro ou Lula, o que está em jogo é a solidez da democracia brasileira: se crimes contra o regime forem tratados como negociáveis, abre-se o caminho para que futuros aventureiros testem novamente os limites da Constituição.