Quando o Estado abandona, a polícia vira resposta para tudo, até para a saúde mental
O caso de Gerson de Melo Machado, jovem de 19 anos morto após entrar na jaula da leoa Leona no zoológico de João Pessoa, escancara uma verdade desconfortável: no Brasil, sofrimento mental ainda é tratado como problema de polícia. E quando o Estado insiste em enxergar transtornos psiquiátricos como ameaça, e não como condição de saúde, o resultado é sempre o mesmo. Tragédia, desamparo e morte.
Gerson quebrou a tela de um caixa eletrônico não para roubar, como muitos repetiram sem pensar, mas porque queria voltar para a prisão. Ele sofria de esquizofrenia e buscava justamente o único local onde sentia algum tipo de cuidado. É absurdo, mas revela algo perverso. O presídio, lugar de punição, funcionava como espaço de acolhimento mínimo. Não porque fosse adequado, mas porque o sistema de saúde mental não conseguiu ocupar esse papel.
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Mesmo após arremessar um paralelepípedo contra uma viatura da Polícia Militar e praticamente implorar ao delegado para ser preso, Gerson foi liberado com a orientação genérica de procurar um Caps. Na prática, isso significa empurrar o problema para a rua e torcer para que desapareça. É a política pública da omissão: faça o mínimo, declare que fez o suficiente e espere que ninguém cobre as consequências.
A verdade crua é que o Estado brasileiro não assume responsabilidade pela saúde mental de pessoas vulneráveis. Delegacias viram prontos-socorros psiquiátricos improvisados. Viaturas substituem ambulâncias. Policiais são forçados a lidar com quadros clínicos para os quais não têm preparo, nem deveriam ter. E jovens como Gerson são empurrados de um lado para outro, até cair em um buraco institucional do qual poucos retornam.
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O diretor do presídio do Roger afirmou que o rapaz dizia que ali era sua família. Não porque a prisão fosse um ambiente saudável, mas porque do lado de fora não havia absolutamente nada. Nenhuma rede de apoio, nenhum acompanhamento consistente, nenhuma política pública capaz de garantir dignidade. Gerson passou pela polícia três vezes, passou pelo judiciário, passou por serviços sociais e de saúde. Em todos eles encontrou portas entreabertas, burocracia e silêncio.
Sua morte não é um acidente isolado. É um retrato fiel de como o país prefere ignorar a saúde mental dos pobres e dos invisíveis. O Estado só aparece quando é para algemar, deter e encaminhar. Para cuidar, nunca. Para acompanhar, quase nunca. Para prevenir, menos ainda.
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Enquanto continuarmos tratando doença mental como desvio social, delegando ao sistema penal aquilo que pertence ao sistema de saúde, novas tragédias acontecerão do mesmo jeito, pelos mesmos motivos, com os mesmos personagens. O Brasil não pode fingir surpresa.
Gerson não precisava de cela. Precisava de tratamento, de presença do Estado, de políticas públicas reais e contínuas. Em vez disso, recebeu abandono institucional. Morreu sozinho, desorientado, sem ter para onde ir.
E o país, mais uma vez, finge que não sabe por quê.


