Estado laico sob ataque: a política brasileira e a instrumentalização da fé
Por Fúlvio B. G. de Castro
Professor de Sociologia e Bacharel em Direito.
O Estado laico brasileiro, consagrado na Constituição de 1988, atravessa um momento de tensão que já não pode ser tratado como periférico. A crescente infiltração da religião — em especial de vertentes fundamentalistas do evangelicalismo — no centro das decisões políticas impõe um debate urgente sobre os limites entre fé e poder. Não se trata de negar a religião, mas de preservar uma conquista civilizatória que protege tanto a democracia quanto a própria experiência religiosa.
A separação entre Igreja e Estado é, muitas vezes, apresentada de forma equivocada como uma bandeira antirreligiosa. Historicamente, ocorre exatamente o oposto. Esse princípio foi formulado por cristãos que buscavam proteger a fé da perseguição política e impedir que o poder secular corrompesse a mensagem religiosa. A própria tradição cristã oferece fundamentos claros para essa separação. Nos evangelhos, Cristo afirma que “meu reino não é deste mundo”, demarcando uma fronteira nítida entre o espiritual e o terreno. Quando essa fronteira é rompida, o resultado não é santificação da política, mas sua idolatria.
No Brasil contemporâneo, a atuação da chamada bancada evangélica no Congresso Nacional ilustra esse risco. Formada por parlamentares que se apresentam como representantes diretos de uma suposta “vontade de Deus”, essa frente tem exercido influência decisiva em pautas legislativas que vão desde direitos reprodutivos e políticas de gênero até educação, ciência e cultura. Muitas dessas iniciativas não se baseiam em critérios técnicos, científicos ou constitucionais, mas em interpretações religiosas particulares, convertidas em projetos de lei e discursos morais impostos a toda a sociedade.
Esse movimento é frequentemente justificado pela retórica da “batalha espiritual”, conceito amplamente difundido por lideranças fundamentalistas. Segundo essa lógica, a política deixa de ser um espaço de mediação democrática de interesses e passa a ser um campo de guerra metafísica entre o “bem” e o “mal”. Instituições republicanas, como o Congresso, o Judiciário e a imprensa, são tratadas como territórios a serem “conquistados” para Deus. O efeito prático dessa visão é devastador: adversários políticos deixam de ser oponentes legítimos e passam a ser inimigos morais; o dissenso democrático é substituído por cruzadas ideológicas.
Além disso, a noção de que Deus deseja a ocupação dos três Poderes da República não apenas fere o princípio do Estado laico, como também distorce profundamente os próprios preceitos cristãos. Transformar a política em expressão direta da vontade divina é reduzir Deus a instrumento de poder e justificar, em Seu nome, práticas autoritárias, excludentes e antidemocráticas. Isso é idolatria — a sacralização do poder humano — e não fé.
A história oferece alertas claros sobre esse caminho. A separação entre Igreja e Estado foi fundamental para encerrar séculos de guerras religiosas que devastaram sociedades inteiras. Foi esse princípio que permitiu a convivência plural, a liberdade de culto e a paz civil em sociedades diversas. Reabrir essa porta, ainda que sob novas roupagens, significa flertar novamente com conflitos que a humanidade levou séculos para superar.
Diante desse cenário, cabe à sociedade civil discutir e construir mecanismos institucionais de proteção ao Estado laico. Isso passa pelo fortalecimento da educação cívica, pela vigilância sobre a atuação parlamentar, pelo respeito à Constituição e pela recusa de qualquer projeto político que reivindique legitimidade divina para governar. Na igreja, deve-se falar de fé; na política, de políticas públicas. Misturar esses campos não fortalece nenhum deles — apenas corrói ambos.
Defender o Estado laico, portanto, não é atacar a religião. É defendê-la da corrupção do poder e, ao mesmo tempo, proteger a democracia de uma teologia que transforma a política em guerra santa. A pergunta que se impõe é simples e incômoda: queremos avançar na pluralidade democrática ou retroceder a um passado marcado por conflitos religiosos travestidos de virtude moral?


