Da Casa da Dinda à recusa no SBT, o sertanejo que insiste em cantar fora do tom do Brasil
Se depender de alguns cantores sertanejos, o brasileiro vai continuar dançando, e não é de dança que estamos falando
A informação de que Zezé Di Camargo teria pedido o cancelamento de um especial no SBT levanta uma ironia inevitável. Será que o incômodo foi a presença do presidente Lula no lançamento de um canal de notícias do SBT, um evento institucional relevante para a mídia brasileira? Ou seria apenas mais um capítulo de uma longa desafinação de parte do universo sertanejo com o Brasil real?
A pergunta, claro, é irônica. Afinal, se o problema é dividir espaço com autoridades, fica a dúvida. Zezé aceitaria cantar para Jair Bolsonaro em uma eventual cela da Polícia Federal? Ou para Fernando Collor de Mello, agora em prisão domiciliar? O exagero não é literal, mas serve para expor uma contradição antiga e recorrente.
Não é de hoje que alguns sertanejos parecem perder o tom quando o assunto é política e povo. O exemplo mais emblemático vem do início dos anos 1990. Em 1992, enquanto o país inteiro tomava as ruas com os caras-pintadas e Fernando Collor era afastado da Presidência em meio a denúncias de corrupção, artistas sertanejos foram até a Casa da Dinda, residência do ex-presidente em Brasília, para cantar e prestar solidariedade. O gesto entrou para a história como símbolo do distanciamento entre ídolos populares e o sentimento das ruas.
Décadas depois, o roteiro se repete sob novas roupagens. Um artista que construiu sua carreira falando de amor, sofrimento e da vida simples agora se mostra incomodado com um gesto básico da democracia. O SBT não promoveu um ato partidário, mas o lançamento de um canal jornalístico. Convidar o presidente da República e outras autoridades faz parte da normalidade institucional.
Quando esse gesto é tratado como afronta, o problema deixa de ser ideológico e passa a ser simbólico. Não se trata de esquerda ou direita, mas de aceitar que o Brasil é plural e que a imprensa dialoga com o poder constituído, independentemente de quem ocupe o cargo.
É muito interessante ver Zezé Di Camargo questionando a participação de políticos em um canal de noticias , especialmente quando se observa que os cachês de artistas, inclusive do meio sertanejo, dispararam nos últimos anos justamente por causa da relação com o poder público. Em grande parte do país, são as prefeituras que contratam shows, muitas vezes pagando valores superiores aos praticados no mercado privado, o que acaba inflacionando todo o setor.
Se parte do sertanejo prefere a disputa permanente em vez da pacificação, o resultado é conhecido. A música pode continuar popular, mas a sintonia com o Brasil real segue desafinada.
Veja:
Se levar o presidente da República no dia do lançamento de um canal de notícias é, para alguns, “se prostituir”, o que seria então ir cantar para um presidente que foi cassado por desvio de recursos e que hoje, mesmo ocupando o cargo de senador, está em prisão domiciliar, como Zezé e outros sertanejos fizeram, enquanto os caras-pintadas estavam nas ruas pedindo o impeachment de Collor?


