Padres suicidas: algo não vai bem
Não só podemos, mas devemos nos perguntar se tudo está bem com os Padres; ainda mais sabendo outro Padre se suicidou no Brasil. (Imagem: Pixabay)
No dia 04 de agosto, a liturgia católica celebra a memória de São João Maria Vianney, o Santo Cura D’Ars. Pároco de uma pequena cidade do interior francês, tornou-se conhecido por seu zelo pastoral e cuidado para com todas aquelas e todos aqueles que dele se aproximavam à procura da misericórdia de Deus pelo Sacramento da Reconciliação. É conhecido o tempo que o Cura D’Ars passava atendendo confissões de fiéis que peregrinavam dos mais diversos locais da França, ao longo da primeira metade do século XIX.
Igualmente, no dia 04 de agosto, comemora-se o “dia do Padre”; até poucos anos atrás, o dia do Cura D’Ars era o dia dos párocos, mas Bento XVI o proclamou patrono de todos os Padres e não somente daqueles que estão à frente das comunidades paroquiais. Contudo, em 2022, não só podemos, mas devemos nos perguntar se tudo está bem com os Padres; ainda mais sabendo que dois dias antes de seu dia outro Padre se suicidou no Brasil.
Já tivemos a oportunidade de refletir sobre a dor do suicídio de Padres (https://www.bemparana.com.br/blog/teologiaeinclusao/a-dor-do-suicidio-nove-padres-se-suicidaram-em-2021-o-que-fazer#.YYu5plXMKpp), mas convém avançar mais no tema. É pertinente não só especularmos sobre as possíveis causas psíquicas que levam um “homem de Deus” a tirar sua própria vida; pensamos que é mais que urgente mergulhar no sentido da vida ministerial, na sua Teologia, e a partir disso vislumbrar as estruturas eclesiásticas e sua validade no século XXI porque claramente algo não vai bem.
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Francisco convocou a Igreja para uma “caminhada sinodal”; o Papa que veio do “fim do mundo” tem se mostrado muito comprometido com o processo de abertura e reforma da Igreja iniciado pelo Concílio Vaticano II (1962-1965). O ponto de partida dos bispos que se reuniram, em Roma para a ocasião, já não era a contraposição Igreja x mundo, mas Igreja em sua missão no mundo. Não se tratava mais de uma sociedade perfeito, como definiu São Roberto Belarmino no período tridentino, mas do Povo de Deus peregrino, como apresentou a Constituição Dogmática Lumen Gentium sobre a Igreja (LG II).
No centro já não está mais o clero ou a hierarquia, assim comumente chamada, mas o Povo reunido por Jesus de Nazaré, na força de seu Espírito, para Deus, o Pai (At 20,28; 1Pe 1,23; 2,9-10). A leitura atenta dos Evangelhos e demais textos do Novo Testamento nos indicam claramente que Jesus não se ocupou com a formação de uma “casta sacerdotal”, mas percorreu a Galileia e subiu a Jerusalém anunciando a proximidade do Reino de Deus, que permite às mulheres e aos homens assumir uma vida nova marcada pela fraternidade e pela justiça. Ele nunca se identificou com o “sacerdócio” do Templo de Jerusalém, o que nos leva a contemplá-lo mais como leigo que como clérigo, no sentido atual dos termos (SOBRINO, 1994, p. 191).
Aqueles que foram colocados à frente das comunidades de discípulas e discípulos de Jesus, sobretudo os Doze, não tinham uma função cultual, em primeiro lugar, mas se dedicavam à oração e à Palavra (At 6,4). Eles deram continuidade à missão do anúncio do Reino de Deus, levada a cabo pelo Mestre. Não eram homens que se dedicavam somente à Eucaristia, mas que a celebravam em um contexto comunitário; de fato, o sentido da celebração eucarística era a proximidade do Reino.
Podemos dizer que até o I Concílio de Niceia (325), aqueles que presidiam as comunidades não estavam sobre elas, mas precisamente nelas; “caminhavam juntos” com aquelas e aqueles que aderiam à fé em Jesus. Tudo isso, porém, passa por profundas mudanças com a conversão do Cristianismo a religião oficial do Império Romano; as palavras aqui usadas são propositais, porque o que pretendemos destacar não é o Império Romano que se tornara cristão, mas a Igreja que se tornou imperial.
Bispos, até então membros de comunidades locais, passaram a se revestir de honrarias e privilégios; a palavra “clero” que passou a usada para se referir a dignitários eclesiásticos estava carregada dessa concepção. A liturgia, até então entendida como “obra do povo”, isto é, segundo sua etimologia, passa a ser função clerical e performada em grandes templos, as basílicas. Esse processo de distanciamento do clero só começou com a conversão da Igreja ao Império; o processo se aprofundou ainda mais na Idade Média, especialmente com a reforma gregoriana do século XI, e na Idade Moderna com o Concílio de Trento e o período seguinte. Porém, as consequências desse processo trazem sérias implicações para a Igreja em pleno século XXI.
Jorge Costadoat, jesuíta chileno, apresentou há pouco uma expressão que condensa o processo: a “sacerdotalização” do ministério ordenado e, consequentemente, de toda a Igreja. Segundo o teólogo, a “des-sacerdotalização” é urgente, se pretendemos edificar uma Igreja verdadeiramente sinodal, isto é, uma Igreja em que todas e todos “caminham juntos” (https://www.religiondigital.org/cristianismo_en_construccion/des-sacerdotalizar-Crisis-Sacerdocio_7_2424727513.html). Usualmente o clericalismo é apontado como o empecilho mais grave para a sinodalidade, mas o clericalismo está diretamente vinculado à moral, ou seja, à conduta dos ministros ordenados; não obstante, a “sacerdotalização” expressa um desvio teológico desse ministério e de seu exercício na Igreja.
Embora já tenhamos mencionado, vale remarcar que o processo de distanciamento dos ministros ordenados – principalmente de bispos e de padres – da comunidade está unido a processo de “privatização” da fé, iniciado com a conversão da Igreja ao Império e muito acentuado na Idade Média. A prática comunitária da fé, central para as comunidades cristãs dos três primeiros séculos, sede espaço à uma vivência individual exageradamente marcada pelo mérito do indivíduo. O centro deixa de ser o anúncio do Reino de Deus e se torna o acúmulo de “boas obras” para alcançar o “céu”; dentre essas “boas obras”, a principal era a participação no sacrifício eucarístico (TABORDA, 2011, p. 115). Podemos dizer, portanto, que há um duplo distanciamento: do “clero” da comunidade e da Igreja do anúncio do Reino de Deus, a missão de Jesus de Nazaré.
Torna-se central para a Igreja a vida em torno dos templos; a comunidade já não é mais no foco da ação eclesial, mas um território geográfico cujo centro é o templo, a paróquia. Ainda hoje, vivemos em nossas dioceses o modelo da Paróquia tridentina centrada no templo e na figura do pároco.
Não só o esvaziamento dos templos, mas o envelhecimento do rebanho católico é notório. Não se trata de um fenômeno vivido somente na Europa, vemos isso com grande frequência nos países que até pouco tempo atrás eram a esperança do Catolicismo para o século XXI. As paróquias das grandes cidades brasileiras, por exemplo, já não possuem o mesmo vigor de 30 ou 20 anos. Ao mesmo tempo, o peso da administração de um patrimônio gigantesco vem achatando o cuidado pastoral; não são poucos os conselhos paroquiais que mais se dedicam a festas e a eventos que propriamente à evangelização. Algo não vai bem.
Todo esse peso cai diretamente sobre as costas do “homem de Deus” que está à frente da paróquia. Além de ter que ser “sagrado”, o padre também deve ser bom administrador, simpático, falar bem… Muitos insistem que devemos olhar os padres como seres humanos e não exigir demais deles, será essa a solução? Não deveríamos “des-sacerdotalizar” o ministro ordenado e repensar nossas estruturas tão baseadas nessa figura? Não se trata somente de um questionamento especulativo, trata-se de recuperar a relevância da mensagem de Jesus de Nazaré no século XXI. Infelizmente, como o ministério vem sendo exercido, isto é, “sacerdotalizado”, o futuro da Igreja não se vê muito promissor, parafraseando o saudoso e querido João Batista Libânio.
Nossa reflexão não pretende ser ponto de chegada, mas ponto de partida. Deixar-se questionar pelo neologismo “des-sacerdotalização” nos abre amplos horizontes e nos permitem encarar sérias questões, como o celibato, a formação nos seminários, o tradicionalismo e o mimetismo litúrgico do jovem clero, a ordenação presbiteral de homens casados, o ministério de presidência das comunidades aberto a mulheres, a responsabilidade evangelizadora de leigas e leigos, a urgência de repensar os modelos de evangelização e de gestão da Igreja, entre outros.
Sem sombra de dúvidas, o Cura D’Ars foi um modelo de zelo pastoral no século XIX. Suas atitudes e docilidade ao Espírito são louváveis; suas ações, irrepetíveis. Insistir que os padres e, consequentemente, a Igreja sejam hoje como há 200 anos atrás, erro grave que conduz à insatisfação, ao esgotamento, à angústia e, tristemente, ao suicídio. Algo não vai bem…
* Pe. Matheus da Silva Bernardes é sacerdote da Arquidiocese de Campinas/SP e professor de Teologia da PUC-Campinas.