Quando a bala sobe o morro, mas não desce o asfalto
Quando a polícia entra atirando nos morros, quase ninguém se incomoda. Há quem bata palmas, quem chame de “limpeza” e quem diga que “bandido bom é bandido morto”. Mas será que a reação seria a mesma se as forças de segurança invadissem um condomínio de luxo e, em meio a uma operação, matassem um suposto traficante dentro de uma cobertura?
Maringá FM conquista pela 9ª vez o prêmio Top of Mind e reafirma liderança entre os maringaenses
A pergunta incomoda, e é justamente por isso que precisa ser feita. O Brasil parece ter naturalizado a morte quando ela acontece em determinados CEPs e se escandaliza quando a mesma violência ameaça cruzar os portões eletrônicos dos bairros mais caros. O crime é o mesmo, mas o endereço muda a narrativa.
A lei, no entanto, não muda conforme o mapa. O policial não tem autorização para matar por matar, nem no morro nem no condomínio. O que a legislação permite é o uso da força em legítima defesa, conceito previsto no artigo 25 do Código Penal: “Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.”
Ou seja, só há legítima defesa quando a vida do policial ou de terceiros está em risco real, e a reação é proporcional e necessária. Fora disso, é homicídio, ainda que a vítima seja um criminoso conhecido. Não existe licença para matar no ordenamento jurídico brasileiro.
Apesar disso, alguns políticos preferem a retórica fácil da violência. O deputado Nikolas Ferreira, por exemplo, costuma afirmar que “é só matar traficante”, como se o simples ato de apertar o gatilho fosse solução para o problema da criminalidade. Esquece que todo cidadão, mesmo acusado de crime, tem direito a julgamento, defesa e investigação justa. Ao pregar que basta matar, o deputado ignora que entre os alvos podem estar inocentes, pessoas confundidas ou até vítimas de erros de informação, algo infelizmente comum em operações policiais. Mais grave: um parlamentar que faz esse tipo de discurso não está preocupado em resolver o problema da violência, mas em angariar votos dos que acreditam que tudo se resolve na bala. É populismo armado, perigoso e inconsequente.
O problema é que a aplicação da lei depende de quem morre e de onde morre. Nos morros, muitas vezes a versão oficial basta: “houve confronto”. Nos bairros nobres, a sociedade exige perícia, imagens, testemunhas e provas. O mesmo Estado que confia cegamente na palavra policial nas periferias questiona e investiga com rigor quando o cenário muda.
Essa seletividade é moralmente inaceitável e juridicamente perigosa. O princípio da igualdade perante a lei, previsto no artigo 5º da Constituição Federal, não se aplica apenas a quem é julgado, mas também à forma como o Estado exerce seu poder. Se o uso da força é legítimo numa favela, deve ser legítimo e igualmente escrutinado num condomínio de luxo.
Planos de saúde acumulam alta de quase 400% em uma década
Não é difícil prever o choque se uma operação policial terminasse com corpos caídos na piscina de um prédio de alto padrão. Haveria protestos, coletivas, nota da administração do condomínio, advogados e manchetes em tom de escândalo. A mesma sociedade que hoje aplaude mortes “lá longe” exigiria moderação, câmeras corporais, controle e responsabilização. O discurso da guerra ao tráfico mudaria de tom assim que a guerra chegasse mais perto.
É nesse contraste que mora a contradição brasileira. O país defende o Estado de Direito, mas tolera exceções quando o alvo é pobre, preto ou periférico. A polícia, que deve agir dentro da lei, é empurrada para um terreno onde matar vira rotina e questionar vira tabu. E o resultado é duplo: vidas perdidas e corporações desgastadas, cuja imagem é manchada por ações que extrapolam o limite legal.
Vale lembrar que toda morte decorrente de intervenção policial deve ser investigada por inquérito, com perícia do Instituto Médico-Legal, acompanhamento do Ministério Público e controle externo. Nenhum “auto de resistência” pode ser aceito sem apuração. Essas são garantias legais não só para a sociedade, mas também para o próprio policial que age corretamente.
Há quem diga que quem defende bandido é contra a polícia. Bobagem. Defender a lei é defender também o policial que atua dentro dela. O que destrói as forças de segurança não é o controle, é a impunidade seletiva, que transforma a justiça em conveniência.
Por isso, a discussão sobre o uso da força não pode depender do endereço. Se aplaudimos tiros nos morros, precisamos estar prontos para a mesma lógica quando os tiros ecoarem nos condomínios de luxo. E é quase certo que, nesse dia, a reação será bem diferente.
A coerência moral de uma nação se mede pelo valor que dá à vida, todas as vidas, e pelo respeito que exige ao agir em nome da lei. Justiça que muda conforme o CEP não é justiça. É privilégio disfarçado de segurança pública.
Imagem Manchete: Folha de São Paulo


